quinta-feira, 12 de abril de 2018

A dúvida de Salomão




Salomão foi rei em Israel e foi considerado o homem mais sábio da Antiguidade[1]. Ele fez prosperar o reino e manteve a paz em suas mediações. Ao falarmos de Salomão lembramos logo do famoso episódio no qual duas mulheres puseram-se diante dele com um bebê de colo, ambas alegando a maternidade. Em uma época aonde não havia exames de DNA, Salomão agiu e julgou a causa com sabedoria, devolvendo a criança à verdadeira mãe[2].
São três os livros do Antigo Testamento atribuídos à Salomão: Cântico dos cânticos, Provérbios[3] e Eclesiastes. Diz-se que quando jovem, Salomão teria escrito o Cântico dos cânticos, poema erótico que fala do amor de um homem por sua amada[4]. Já adulto Salomão teria escrito o livro de Provérbios, aonde o rei, tendo alcançado prosperidade material, dá diversos conselhos sobre finanças, negócios, casamento e diversos outros assuntos da vida prática e cotidiana. E, finalmente, tendo alcançado a velhice, Salomão teria escrito o livro de Eclesiastes, aonde já desiludido com a vaidade da vida, a frugalidade dos prazeres e a prosperidade material, o rei destila em poucas páginas todo o seu cinismo e sua descrença[5]. Torna-se amargo, porém é justamente aí que é alçado ao patamar de homem sábio. Como ele mesmo afirma: “Porque na muita sabedoria há muito enfado; e o que aumenta em ciência aumenta em trabalho” (Eclesiastes 1:18) [6].
Salomão teve tudo o que seu coração desejou. Teve amores e concubinas, gozou de todos os prazeres que um rei pode ter, teve prosperidade material, mas ao fim, concluiu que tudo é vaidade e poeira soprada no vento. Envelheceu com o gosto amargo das desilusões da vida, da falta de sentido e explicação para as calamidades e injustiças que ocorrem debaixo do sol; e, por fim, a falta de explicação e sentido para a própria morte.
Salomão inicia o Livro de Eclesiastes com seu famoso bordão “Vaidade de vaidades! diz o pregador, vaidade de vaidades! É tudo vaidade” (Eclesiastes 1:2). E começa sua reflexão mostrando que as coisas terrestres não passam de vaidade, porque por mais que uma geração venha a substituir a outra, tudo se repete num interminável e enfadonho ciclo: o sol nasce e põe-se sempre no mesmo lugar, o vento vai para o sul e retorna para o norte, os ribeiros desaguam no mar e depois retornam ao lugar de origem; acabando por concluir que não há nada de novo, nenhuma novidade, muito embora a história passe e os anos transcorram.
No segundo capítulo, o autor conta como buscou dar sentido à vida entregando-se às riquezas e aos prazeres. Conta como se entregara ao vinho, tentando observar-se enquanto se perdia na embriaguez; fala de como construiu obras grandiosas  e jardins elegantes e frutíferos. Amontoando riquezas e gozando de tudo o que o dinheiro podia lhe proporcionar. Salomão afirma que na posteridade não haverá maior lembrança dele com toda sua grandiosidade se comparado a qualquer um ou até mesmo a um tolo em toda sua tolice. Isto porque ambos morrerão. Chega até mesmo a dizer que buscar sabedoria é perda de tempo, pois passadas duas ou três gerações ninguém mais se lembrará de tal homem sábio. O rei então amaldiçoa até mesmo o trabalho que fadiga os homens, pois ao morrer o homem que tanto trabalhou, deixará seu trabalho e os frutos como herança a outrem, que não se sabe se será sábio ou tolo para o manter e administrar.
O rei também coloca-se como alguém que observa o tempo e o investiga. Já disseram certa vez que tudo pode ser recuperado nesta vida, exceto o tempo. Salomão observa e chega a conclusão de que há um tempo para tudo debaixo do céu. E, que o homem não conhece nada e não pode descobrir os mistérios da obra de Deus. Cabe a ele apenas trabalhar e esperar o tempo de cada coisa. Alegrando-se com seu trabalho e em fazer o bem, porque ele morrerá assim como o animal, e não haverá lembrança nem de um, nem de outro.
Em seguida fala sobre os males e as tribulações da vida. Contempla a opressão e maldade que os homens praticam e louva os que já morreram e, mais que esses, aqueles que ainda nem nasceram para ver todas as monstruosidades que são praticadas na terra. Observa que o sucesso de um homem arrasta consigo a inveja de seu próximo, afirmando que
Melhor é uma mão cheia com descanso do que ambas as mãos cheias com trabalho e aflição de espírito (Eclesiastes 4, 6).
            Exalta aqueles que tem companheiro, porque estes se ajudarão mutuamente nos dias maus, e louva o jovem que é pobre e sábio em detrimento de um rei que é velho e louco.
            O capítulo quinto do livro, por sua vez, é recheado de conselhos práticos para a vida cotidiana. Sobre estes não teceremos comentários, incentivando ao leitor que pegue o texto na íntegra e se delicie.
            Salomão adverte contra o homem cheio de cobiça, dizendo que pode-se ter muito e amealhar muitos bens, sem todavia, deles gozar. Ou porque se está ocupado demais trabalhando ou porque trata-se de um homem rico e doente. Melhor seria gozar do que se tem e não ser tomado pela cobiça, diz o pregador.
Na sequencia o pregador apontará para algo muito importante: as vantagens do sofrimento, da paciência e da moderação. Para dias como os nossos, nos quais somos incentivados a evitar todo e qualquer desconforto, a sermos imediatistas e buscarmos o prazer a todo custo, o pregador (ou, professor) ensina sobre os benefícios do caminho oposto. Frisa principalmente os benefícios do sofrimento, aconselhando a nos determos sobre ele, e assim, meditar sobre a vida; a boa vida. O professor mostrará que o caminho da sabedoria não está no lugar aonde ouvem-se risos de tolos, nem na casa aonde há banquetes e festas. O caminho da sabedoria está na casa aonde há lágrimas e luto. Porque é somente ao refletirmos sobre o sofrimento e a dor, que nos tornamos pessoas melhores e de coração compassivo. Ou, em suas próprias palavras: “Melhor é a tristeza do que o riso, porque com a tristeza do rosto se faz melhor o coração” (Eclesiastes 7, 3). Como se a dor e o sofrimento presentes neste mundo fossem a argila que o sábio usa para esculpir um coração generoso e bom. Enquanto o tolo está se refastelando em festas e banquetes, o sábio está aplicado em tornar seu próprio coração mais belo e compassivo, por meio da “argila” do sofrimento e da dor que há no mundo e em sua própria vida; sofrimento e dor das quais todos nós, irremediavelmente experimentaremos em maior ou menor medida.
            De repente a sabedoria é comparada ao dinheiro; ambos protegem aquele que os possui, exceto pela diferença que a sabedoria confere vida ao sábio, enquanto o dinheiro só proporciona conforto e facilidades. Isto porque o dinheiro sem sabedoria pode ser gasto com bobagens, levando seu possuidor ao precipício, porém a sabedoria nas mãos de quem possui pouco dinheiro pode auferir-lhe vida feliz apesar da falta de dinheiro.
Salomão adverte contra a mulher sem caráter e encerra dizendo que Deus criou o homem reto, mas ele se desviou, buscando muitas invenções que o distraíram de seu propósito original e para o qual Deus o formou; qual seja: ter uma vida simples, reta e alcançar a felicidade.
Dentre tantos conselhos práticos, o professor vai e volta diversas vezes, enfatizando ora isto ora aquilo. Tudo em um tom professoral, como quem pregando admoesta e também ensina.
Finalmente, Salomão conclui seu discurso diante da assembleia reconhecendo de que o melhor da vida é comer e beber com quem se ama, trabalhar o suficiente para se manter de forma digna e honesta e alegrar-se enquanto ainda houver fôlego de vida[7]. Visto assim mais de perto, o professor que fala diante da assembleia tem ideias muito semelhantes às de Epicuro que falava da vida simples e moderada[8]. Assim ensina o Qohelet:
Vai, pois, come com alegria o teu pão e bebe com bom coração o teu vinho, pois já Deus se agrada das tuas obras. (...) Goza a vida com a mulher que amas, todos os dias da tua vaidade; porque esta é a tua porção nesta vida, e do teu trabalho, que tu fizeste debaixo do sol. Tudo quanto te vier à mão para fazer, faze-o conforme as tuas forças, porque na sepultura, para onde tu vais, não há obra, nem indústria, nem ciência, nem sabedoria alguma (Eclesiastes 9: 7,9,10).
E admoesta para que tenhamos disposição para sermos sempre generosos:
Lança o teu pão sobre as águas, porque depois de muitos dias o acharás. Reparte com sete, e ainda até com oito, porque não sabes que mal haverá sobre a terra (Eclesiastes 11:1-2).
Entretanto, mesmo que tenhamos sido generosos e tido uma vida honesta, isso não nos blindará contra as adversidades que poderão nos assolar. Podemos ficar enfermos de uma hora para outra, sofrer um AVC, sermos vítimas de calamidades naturais, perdermos entes queridos, dentre outras vicissitudes. Pois “tudo sucede igualmente a todos; o mesmo sucede ao justo e ao ímpio” (Eclesiastes 9, 2). E, no limite, não há explicação ou sentido para as coisas ruins que nos ocorrem; nem para as coisas ruins que sucedem às pessoas boas[9].
Salomão, a quem é atribuída a autoria do Eclesiastes estava cheio de des-esperança quando escreveu seus últimos conselhos. Porém, prossigamos nosso caminho, nossa jornada espiritual, que está longe de ser uma caminhada rumo ao desespero. Muito pelo contrário, desejamos rumar para a esperança. Prossigamos nossa peregrinação!










[1] A figura de Salomão se tornou lendária e não há base histórica dele como pai da sabedoria. O autor de Eclesiastes é chamado Qohelet, que significa pregador, ou professor.
[2] Livro de Reis 3,16-28
[3] O livro de Provérbios foi compilado depois de 500 a.C., mas trás máximas da tradição oral de 1000 a.C. 
[4] Cântico dos cânticos é o livro preferido dos místicos que interpretam-no não como sendo um poema de amor d’um homem para sua amada, mas da alma para seu Deus, seu Amado.
[5] Leia também: “Quando tudo não é o bastante”, do rabino Harold Kushner. Obra que me inspirou a escrever este capítulo e da qual retirei muitas coisas.
[6] Outras traduções usaram ao invés de “trabalho” a palavra “sofrimento”, dizendo que aquele que aumenta em conhecimento aumenta também em sofrimento. Relacionando tornar-se sábio com tornar-se sofrido e amargo.
[7] Muitos dirão que o livro de Eclesiastes conclui que há sim uma explicação e um sentido e de que o temor do Senhor é o princípio da sabedoria. Porém os estudos de teologia crítica apontam de que os últimos versos do Eclesiastes tratam-se de  um acréscimo posterior, com o objetivo de camuflar o cinismo e desespero do autor. 
[8] Muitos dizem que o autor de Eclesiastes foi um judeu helenizado, isto é, um judeu que assimilou não só a maneira grega de pensar, mas também de duvidar e questionar. Outrossim, poderíamos dizer que Qohelet é o primeiro existencialista da história.
[9] Leia também: “Quando coisas ruins acontecem à pessoas boas”, do rabino Harold Kushner.

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