Salomão foi rei em Israel
e foi considerado o homem mais sábio da Antiguidade[1]. Ele fez prosperar o reino
e manteve a paz em suas mediações. Ao falarmos de Salomão lembramos logo do famoso
episódio no qual duas mulheres puseram-se diante dele com um bebê de colo,
ambas alegando a maternidade. Em uma época aonde não havia exames de DNA,
Salomão agiu e julgou a causa com sabedoria, devolvendo a criança à verdadeira
mãe[2].
São
três os livros do Antigo Testamento atribuídos à Salomão: Cântico dos cânticos, Provérbios[3]
e Eclesiastes. Diz-se que quando
jovem, Salomão teria escrito o Cântico dos cânticos, poema erótico que fala do
amor de um homem por sua amada[4]. Já adulto Salomão teria
escrito o livro de Provérbios, aonde o rei, tendo alcançado prosperidade
material, dá diversos conselhos sobre finanças, negócios, casamento e diversos outros
assuntos da vida prática e cotidiana. E, finalmente, tendo alcançado a velhice,
Salomão teria escrito o livro de Eclesiastes, aonde já desiludido com a vaidade
da vida, a frugalidade dos prazeres e a prosperidade material, o rei destila em
poucas páginas todo o seu cinismo e sua descrença[5]. Torna-se amargo, porém é
justamente aí que é alçado ao patamar de homem sábio. Como ele mesmo afirma: “Porque
na muita sabedoria há muito enfado; e o que aumenta em ciência aumenta em
trabalho” (Eclesiastes 1:18) [6].
Salomão
teve tudo o que seu coração desejou. Teve amores e concubinas, gozou de todos
os prazeres que um rei pode ter, teve prosperidade material, mas ao fim, concluiu
que tudo é vaidade e poeira soprada no vento. Envelheceu com o gosto amargo das
desilusões da vida, da falta de sentido e explicação para as calamidades e
injustiças que ocorrem debaixo do sol; e, por fim, a falta de explicação e
sentido para a própria morte.
Salomão inicia o Livro de
Eclesiastes com seu famoso bordão “Vaidade de vaidades! diz o pregador, vaidade
de vaidades! É tudo vaidade” (Eclesiastes 1:2). E começa sua reflexão mostrando
que as coisas terrestres não passam de vaidade, porque por mais que uma geração
venha a substituir a outra, tudo se repete num interminável e enfadonho ciclo:
o sol nasce e põe-se sempre no mesmo lugar, o vento vai para o sul e retorna
para o norte, os ribeiros desaguam no mar e depois retornam ao lugar de origem;
acabando por concluir que não há nada de novo, nenhuma novidade, muito embora a
história passe e os anos transcorram.
No segundo capítulo, o
autor conta como buscou dar sentido à vida entregando-se às riquezas e aos
prazeres. Conta como se entregara ao vinho, tentando observar-se enquanto se
perdia na embriaguez; fala de como construiu obras grandiosas e jardins elegantes e frutíferos. Amontoando
riquezas e gozando de tudo o que o dinheiro podia lhe proporcionar. Salomão afirma
que na posteridade não haverá maior lembrança dele com toda sua grandiosidade se
comparado a qualquer um ou até mesmo a um tolo em toda sua tolice. Isto porque
ambos morrerão. Chega até mesmo a dizer que buscar sabedoria é perda de tempo,
pois passadas duas ou três gerações ninguém mais se lembrará de tal homem
sábio. O rei então amaldiçoa até mesmo o trabalho que fadiga os homens, pois ao
morrer o homem que tanto trabalhou, deixará seu trabalho e os frutos como
herança a outrem, que não se sabe se será sábio ou tolo para o manter e administrar.
O rei também coloca-se
como alguém que observa o tempo e o investiga. Já disseram certa vez que tudo
pode ser recuperado nesta vida, exceto o tempo. Salomão observa e chega a
conclusão de que há um tempo para tudo debaixo do céu. E, que o homem não
conhece nada e não pode descobrir os mistérios da obra de Deus. Cabe a ele
apenas trabalhar e esperar o tempo de cada coisa. Alegrando-se com seu trabalho
e em fazer o bem, porque ele morrerá assim como o animal, e não haverá
lembrança nem de um, nem de outro.
Em seguida fala sobre os
males e as tribulações da vida. Contempla a opressão e maldade que os homens
praticam e louva os que já morreram e, mais que esses, aqueles que ainda nem
nasceram para ver todas as monstruosidades que são praticadas na terra. Observa
que o sucesso de um homem arrasta consigo a inveja de seu próximo, afirmando
que
Melhor é uma mão cheia com descanso do que ambas as
mãos cheias com trabalho e aflição de espírito (Eclesiastes 4, 6).
Exalta aqueles que tem companheiro, porque estes se
ajudarão mutuamente nos dias maus, e louva o jovem que é pobre e sábio em
detrimento de um rei que é velho e louco.
O capítulo quinto do livro, por sua vez, é recheado de
conselhos práticos para a vida cotidiana. Sobre estes não teceremos comentários,
incentivando ao leitor que pegue o texto na íntegra e se delicie.
Salomão adverte contra o homem cheio de cobiça, dizendo
que pode-se ter muito e amealhar muitos bens, sem todavia, deles gozar. Ou
porque se está ocupado demais trabalhando ou porque trata-se de um homem rico e
doente. Melhor seria gozar do que se tem e não ser tomado pela cobiça, diz o
pregador.
Na sequencia o pregador apontará para algo
muito importante: as vantagens do sofrimento, da paciência e da moderação. Para
dias como os nossos, nos quais somos incentivados a evitar todo e qualquer
desconforto, a sermos imediatistas e buscarmos o prazer a todo custo, o
pregador (ou, professor) ensina sobre os benefícios do caminho oposto. Frisa
principalmente os benefícios do sofrimento, aconselhando a nos determos sobre
ele, e assim, meditar sobre a vida; a boa vida. O professor mostrará que o
caminho da sabedoria não está no lugar aonde ouvem-se risos de tolos, nem na
casa aonde há banquetes e festas. O caminho da sabedoria está na casa aonde há
lágrimas e luto. Porque é somente ao refletirmos sobre o sofrimento e a dor,
que nos tornamos pessoas melhores e de coração compassivo. Ou, em suas próprias
palavras: “Melhor é a tristeza do que o riso, porque com a tristeza do rosto se
faz melhor o coração” (Eclesiastes 7, 3). Como se a dor e o sofrimento
presentes neste mundo fossem a argila que o sábio usa para esculpir um coração
generoso e bom. Enquanto o tolo está se refastelando em festas e banquetes, o
sábio está aplicado em tornar seu próprio coração mais belo e compassivo, por
meio da “argila” do sofrimento e da dor que há no mundo e em sua própria vida;
sofrimento e dor das quais todos nós, irremediavelmente experimentaremos em
maior ou menor medida.
De repente a sabedoria é comparada ao dinheiro; ambos
protegem aquele que os possui, exceto pela diferença que a sabedoria confere
vida ao sábio, enquanto o dinheiro só proporciona conforto e facilidades. Isto
porque o dinheiro sem sabedoria pode ser gasto com bobagens, levando seu
possuidor ao precipício, porém a sabedoria nas mãos de quem possui pouco
dinheiro pode auferir-lhe vida feliz apesar da falta de dinheiro.
Salomão
adverte contra a mulher sem caráter e encerra dizendo que Deus criou o homem
reto, mas ele se desviou, buscando muitas invenções que o distraíram de seu
propósito original e para o qual Deus o formou; qual seja: ter uma vida simples,
reta e alcançar a felicidade.
Dentre
tantos conselhos práticos, o professor vai e volta diversas vezes, enfatizando
ora isto ora aquilo. Tudo em um tom professoral, como quem pregando admoesta e também
ensina.
Finalmente, Salomão
conclui seu discurso diante da assembleia reconhecendo de que o melhor da vida
é comer e beber com quem se ama, trabalhar o suficiente para se manter de forma
digna e honesta e alegrar-se enquanto ainda houver fôlego de vida[7]. Visto assim mais de
perto, o professor que fala diante da assembleia tem ideias muito semelhantes
às de Epicuro que falava da vida simples e moderada[8]. Assim ensina o Qohelet:
Vai, pois, come com alegria o teu pão e bebe com bom
coração o teu vinho, pois já Deus se agrada das tuas obras. (...) Goza a vida
com a mulher que amas, todos os dias da tua vaidade; porque esta é a tua porção
nesta vida, e do teu trabalho, que tu fizeste debaixo do sol. Tudo quanto te
vier à mão para fazer, faze-o conforme as tuas forças, porque na sepultura,
para onde tu vais, não há obra, nem indústria, nem ciência, nem sabedoria alguma
(Eclesiastes 9: 7,9,10).
E
admoesta para que tenhamos disposição para sermos sempre generosos:
Lança o teu pão sobre as águas,
porque depois de muitos dias o acharás. Reparte com sete, e ainda até com oito,
porque não sabes que mal haverá sobre a terra (Eclesiastes 11:1-2).
Entretanto,
mesmo que tenhamos sido generosos e tido uma vida honesta, isso não nos
blindará contra as adversidades que poderão nos assolar. Podemos ficar enfermos
de uma hora para outra, sofrer um AVC, sermos vítimas de calamidades naturais,
perdermos entes queridos, dentre outras vicissitudes. Pois “tudo sucede
igualmente a todos; o mesmo sucede ao justo e ao ímpio” (Eclesiastes 9, 2). E,
no limite, não há explicação ou sentido para as coisas ruins que nos ocorrem;
nem para as coisas ruins que sucedem às pessoas boas[9].
Salomão,
a quem é atribuída a autoria do Eclesiastes estava cheio de des-esperança
quando escreveu seus últimos conselhos. Porém, prossigamos nosso caminho, nossa
jornada espiritual, que está longe de ser uma caminhada rumo ao desespero.
Muito pelo contrário, desejamos rumar para a esperança. Prossigamos nossa
peregrinação!
[1] A
figura de Salomão se tornou lendária e não há base histórica dele como pai da
sabedoria. O autor de Eclesiastes é
chamado Qohelet, que significa pregador, ou professor.
[2] Livro de
Reis 3,16-28
[3]
O livro de Provérbios foi compilado depois de 500 a.C., mas trás máximas da
tradição oral de 1000 a.C.
[4]
Cântico dos cânticos é o livro preferido dos místicos que interpretam-no não
como sendo um poema de amor d’um homem para sua amada, mas da alma para seu
Deus, seu Amado.
[5]
Leia também: “Quando tudo não é o bastante”, do rabino Harold Kushner. Obra que
me inspirou a escrever este capítulo e da qual retirei muitas coisas.
[6]
Outras traduções usaram ao invés de “trabalho” a palavra “sofrimento”, dizendo
que aquele que aumenta em conhecimento aumenta também em sofrimento.
Relacionando tornar-se sábio com tornar-se sofrido e amargo.
[7]
Muitos dirão que o livro de Eclesiastes conclui que há sim uma explicação e um
sentido e de que o temor do Senhor é o princípio da sabedoria. Porém os estudos
de teologia crítica apontam de que os últimos versos do Eclesiastes tratam-se
de um acréscimo posterior, com o
objetivo de camuflar o cinismo e desespero do autor.
[8]
Muitos dizem que o autor de Eclesiastes foi um judeu helenizado, isto é, um
judeu que assimilou não só a maneira grega de pensar, mas também de duvidar e
questionar. Outrossim, poderíamos dizer que Qohelet é o primeiro
existencialista da história.
[9]
Leia também: “Quando coisas ruins acontecem à pessoas boas”, do rabino Harold
Kushner.
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