Isaías 61,2: “A apregoar o ano
aceitável do Senhor e o dia da vingança do nosso Deus; a consolar todos os
tristes”.
É
incrível a poesia e sutileza das palavras que inauguram o capítulo 61 do livro
do profeta Isaias. Mas queremos deter nossa atenção apenas no versículo 2, e
dentro deste, no trecho em que o profeta anuncia o dia da vingança de Deus,
Deus este, que Isaías chama de nosso.
Não
foi por acaso que escolhemos tratar deste verso – um verso que anuncia a
vingança de Deus. É muito comum ouvirmos
pessoas religiosas apregoando um Deus punitivo, que está sempre pronto a
vingar-se dos ímpios. Tais pessoas falam em alto e bom som: “veja o que
aconteceu a este homem – disse que nem mesmo Deus poderia afundar a embarcação,
pois não é que ela afundou!”, “ veja este estelionatário, agora na sarjeta, foi
a mão punitiva de Deus”, “veja aquela
mulher promíscua, contraiu uma doença grave, é a mão pesada de Deus”.
Diante
de tais falas, nós, por costume do ofício, somos obrigados a dar um passo atrás
e perguntar: será que um Deus assim merece ser adorado e servido?
Deixemos
por enquanto suspensa a pergunta e prossigamos com nossa investigação do
versículo em questão. No Evangelho Segundo Lucas 4, 17-19, diz-se que Jesus
levantou-se na sinagoga e leu o livro de Isaías 61, porém, Jesus pára a leitura
antes de mencionar o dia da vingança do Senhor. Jesus cessa a leitura
mencionando o ano aceitável do Senhor e não o dia da vingança.
Percebemos
uma mudança de tom no que Isaías diz no capítulo 61 da maneira como Jesus o lê
na sinagoga. Isaías começa falando de alívio, socorro e bonança ao povo de
Deus, mas termina falando de justiça e vingança aos infiéis. Jesus, ao
contrário, fala apenas de socorro, alívio, bonança e Graça. O Deus de Isaías é
um Deus vingativo, tal como muitas pessoas hoje em dia creem que Ele seja.
Jeová tem prazer na vingança e na morte do ímpio. O Deus de Jesus, ao contrário,
não gosta de vingança, mas fala sempre de bonança, vida e Graça. Em última
instância, Ele está disposto a encarnar na forma humana e deixar-se conduzir
até à morte de cruz (para que mais nenhum inocente tenha que pagar com sangue).
E, ainda na cruz, Deus na forma de homem, perdoa a todos.
O
Deus de Jesus não opera segundo a justiça retributiva. Não é um toma lá dá
cá. Deus não age assim. Pelo contrário:
sendo nós pecadores, devemos agradecer a Deus, que não nos trata como
merecemos. Deus nos trata com generosidade, perdão e Graça. Pois se Deus nos
tratasse segundo nossas obras – segundo o que merecemos – cairia fogo do céu.
Porém, como é sabido, quando os discípulos não foram bem recebidos num certo
povoado samaritano, perguntaram se Jesus queria que fizessem cair fogo do céu,
Jesus não autorizou. Dizendo que ele não veio destruir, mas restaurar a saúde[1].
O
Deus de Jesus age motivado não pela justiça ou merecimento das pessoas, mas age
por Graça, bonança e generosidade. Dá de si e se doa mesmo que não mereçamos.
Dá de graça. Dá porque tem alegria em dar, em presentear. Mas se Deus é assim e
age com tanto amor gratuito e imerecido, porque nós estamos sempre buscando
indícios de vingança nos acontecimentos cotidianos? Seja para amedrontar os outros
ou para nos amedrontar?
Queremos
dizer agora, que o fato da embarcação ter afundado não teve nada a ver com
Deus; e se o estelionatário caiu na sarjeta isto também não tem a ver com Deus;
tampouco a mulher dada à promiscuidade e que ficou gravemente enferma, assim
ficou por outra causa que não teve nada a ver com Deus.
Ora,
somente alguém que precisa afirmar constantemente seu ego estaria preocupado em
mostrar a essas pessoas com quem elas estavam se metendo. Somente alguém cujo
ego é inflado se preocuparia em por cada uma delas em seu lugar. Mas o Deus que
Jesus nos apresenta é um Deus que, após ter encarnado e ter sido crucificado,
esvaziou-se de si mesmo – esvaziou-se do falso ego. A partir e com Jesus, Deus
não precisa mais afirmar-se, pois Ele voluntariamente esvaziou-se. Deus não tem
mais aquela necessidade de auto-afirmação. Ao contrário, o Deus de Jesus é um
Deus que se nega a si mesmo, que se esvazia e que se “afasta” para humildemente
dar espaço para que sejamos quem nós realmente somos. O ego ocupa lugar, o ego
se esparrama, por assim dizer. Por isso que gente egoísta está sempre perto das
luzes dos holofotes (se auto-afirmando), assim também se dá com um deus
vingativo: a qualquer falha dos “atores” Ele intervém com fúria, indo para
perto dos holofotes. Um deus assim, que precisa sempre se auto-afirmar está
inflado e cheio de ego(ismo). Mas o Deus de Jesus se esvaziou e se humilhou,
encolhendo-se para dar espaço ao homem, deixando que cada um use seu
livre-arbítrio como bem quiser.
Explicado
tudo isto, podemos responder agora a pergunta outrora deixada em suspenso: será
que um Deus vingativo merece ser adorado e servido? Bem... não podemos
responder por todos, mas no que nos diz respeito, diremos que não. Um Deus
vingativo não merece ser nem adorado nem servido. E encadearemos alguns
argumentos que justifiquem nossa resposta: (i) primeiro, porque assim como as
crianças, cheias de ego, só um deus infantil e ego(ísta) sentiria necessidade
de se auto-afirmar a todo o momento que fosse contrariado, (ii) segundo, porque
um deus vingativo se parece muito mais com o diabo do que com o Pai celestial e
(iii) terceiro, porque se nos curvarmos a um deus assim, pode ser que ele peça
coisas de nós para realizar seus próprios caprichos e não para o nosso bem ou o
bem comum.
Um
deus punitivo parece pensar estar lidando com fantoches e não com seres
humanos. Se tal deus exigisse reverência, nós nos insurgiríamos contra ele,
pois tal, não passa de um ídolo. E aqui chegamos ao ponto final deste sermão: o
deus vingativo não é Deus-Pai, mas é um ídolo. Um ídolo não é apenas uma imagem
de pedra ou madeira, esculpida, mas é também a imagem interna que fazemos sobre
o Deus-invisível. Logo que formamos para Deus uma imagem em nossas mentes, ele
deixa de ser Mistério Infinito, Invisível, e se torna algo que pode ser
definido, mexido e com o qual podemos mexer e manipular. Torna-se um ídolo. E
geralmente criamos ídolos à nossa imagem.
Ora,
nós queremos com isso dizer que, quando procuramos indícios de um deus
vingativo no dia-a-dia, é porque o sentimento de vingança – que atribuímos aos
eventos – não está lá fora, nos eventos,
mas aqui dentro do coração. O deus vingativo é o nosso ídolo e
projetamos nele nossa imagem – projetamos em Deus, porque não temos coragem de
assumir nossos sentimentos de vingança[2].
Está
mais do que na hora de quebrarmos os ídolos para adorar o único que merece
adoração: o Deus-Pai, Pai de amor e graça incondicional. Aquele que não nos
trata e não trata a nosso vizinho, segundo o que merecemos, antes, nos trata
com generosidade e Graça. Porque Deus é amor, e quem não ama (mas anseia por
vingança) não conhece a Deus, sendo antes de tudo, um idólatra.
Mas
o amor de Deus é radical – nos alcança onde estivermos. A Graça de Deus é
radical – nos alcança mesmo que não a mereçamos. Devemos, portanto, desejar não
a punição dos ímpios, mas o amor generoso, o mesmo amor que Deus nos oferece
apesar de não o merecermos. Para que a graça radical do Senhor se estenda a
todos, bons e maus[3],
da mesma forma que nos alcançou. Terminando o sermão não como Isaías que
apregoa a vingança do Senhor, mas como Jesus que anuncia Seu ano aceitável. O
ano aceitável para oferecermos a Deus nossos corações, nossa gratidão e nossa
vida oferecida num altar de perdão e de amor ao próximo[4]. No altar do Deus-Pai de
Jesus, ninguém precisa morrer, ninguém é sacrificado, mas todos são restaurados
em saúde – salvos, curados e integrados.
Integrados em suas partes quebrantadas e integrados à comunidade na qual
vissem e professam sua fé.
[1] A palavra original está como salvação. Ocorre que, para a igreja
latina, salvação era a vida pós-morte corporal, mas para a igreja grega
salvação significava saúde. E nós usamos aqui o termo salvação como saúde. Salvar um homem significa restabelecer-lhe a
saúde: saúde corporal, emocional, espiritual enfim, todas as formas possíveis
de saúde.
[2] Percebemos aqui que toda a forma
de teologia é uma antropologia. Que ao tentarmos compreender quem Deus é,
compreendemos quem nós somos. Se eu creio num Deus vingativo, é porque eu sou
vingativo, mas se eu creio num Deus de perdão, é muito provável que eu seja uma
pessoa que perdoa facilmente as ofensas. Teologia é antropologia. Todas as
afirmações que fazemos sobre Deus, podem ser na verdade, afirmações sobre quem
somos. Quem eu digo que é o meu Deus, pode ser na verdade, quem eu sou – a
projeção dos meus desejos mais secretos e escondidos.
[3] Usamos aqui ‘bons e maus’ por uma
questão de fluência, quando queríamos na verdade usar ‘maus e não tão maus’,
afinal, todos somos maus e filhos de Adão.
[4] O próximo como Kierkegaard nos
ensina, é justamente o que está próximo (fisicamente próximo). O próximo é
simplesmente quem está próximo, independente de quem seja.
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