quinta-feira, 12 de abril de 2018

Heteronomia ou autonomia: preleções sobre as leis e os costumes



Estudando e observando a História, notamos que todas as culturas e povos possuíam um código moral, fosse este religioso ou civil – fosse o código fundado na ideia da existência de um deus ou na ideia de Estado; fosse o código sagrado ou laico.
A necessidade de se ter um código moral para os povos dá-se pela razão de que a maioria das pessoas são confusas quanto ao que se deve ou não fazer. Embora o filósofo tenha afirmado que há um imperativo categórico[1] que nos diz o que é certo e o que é errado fazer, não obstante, existem muitos fatos que se bem argumentados, provariam justamente o contrário.  Há até mesmo certas aporias que problematizam o suposto imperativo categórico tornando-o uma pedra de tropeço: (i) um menino está dentro de uma casa em chamas e toda sua família pereceu no incêndio, quando o bombeiro o vê, o menino está encolhido e chora desesperado. Seria correto ao bombeiro se dissesse ao garoto de que sua mãe o espera lá fora, se após muito tentar por outros meios o garoto saísse do perigo iminente? Afinal, nessa hora qual dos valores morais o bombeiro deveria julgar como sendo superior: a honestidade ou a vida? E, mesmo que se decida pela última, não estará ele num conflito e numa aporia? (ii) Outro caso é o de uma mulher velha e feia, carente de amor, que chama o padre e lhe diz “padre, eu sou velha e feia, ninguém me deseja, por caridade, me dê  um pouco de afago e carinho”. O padre tendo ouvido isto deveria seguir o valor da castidade pelo qual vez votos ou o valor da caridade pelo qual também fez votos? Aqui vemos claramente dois exemplos de aporias, aonde nem o bombeiro nem o padre sabem o que fazer, mesmo que consultem seus corações[2]. Conclui-se daqui, que às vezes a faculdade da razão ou o imperativo categórico não são suficientes para que saibamos o que fazer. É por esse motivo que as religiões do Livro possuem cada uma delas um código de leis e costumes – um código exterior e objetivo. É pela mesma razão que as sociedades laicas possuem cada qual seus códigos e costumes – também exteriores e objetivos.
Entretanto, ainda que se tenha um código de leis e costumes exterior e objetivo, o qual pode ser consultado tanto por magistrados como por pessoas comuns, sempre surgirão casos novos para os quais a lei não terá resposta. Em geral, quando tais casos aparecem, consultam-se as leis, e, no caso destas não responderem satisfatoriamente, consultam-se os costumes e casos anteriormente julgados. Porém, se o caso for inteiramente novo e não houver nada que se refira a ele nem nas leis, nem nos costumes, fará necessário que os magistrados se reúnam em assembleia a fim de solucionar o caso em questão.
Nosso objetivo aqui, contudo, não é discorrer sobre o imperativo categórico, tampouco sobre a objetividade das leis e costumes, mas mostrar a razão suficiente ou os benefícios de se ultrapassar o legalismo[3].
Ora, tomemos novamente o caso do bombeiro e do padre. Tomemos outros mais genéricos, como ocorre muitas vezes em nossa sociedade quando nos dizem: é errado fumar, fazer sexo casual, não tratar o corpo quando este for acometido por uma enfermidade e etc. Quando se tem assim, uma cartilha que separa em duas colunas aquilo que devemos fazer daquilo que não devemos, temos aí um empobrecimento da faculdade de julgar. Uma pessoa que segue à risca tal cartilha nunca perceberá o que está por detrás dela. Porque apesar de sempre haver um grupo de pessoas que elaborou a cartilha com interesses muito específicos, há algo mais importante que a referida cartilha no que diz respeito ao correto agir, qual seja: o princípio por detrás de cada ato considerado bom ou mau.
Diante de toda a máxima que nos diz o que deve ou não ser feito precisamos interpela como se ao interpelar a lei, interpelássemos uma pessoa: ó Máxima, dê um passo para lá e deixe-me ver o que está por detrás de você e o que lhe direciona? É preciso que interpelemos a máxima, nos posicionemos diante dela com a pergunta certa: Máxima, o que está por detrás de você e lhe move? Máxima, quais são suas reais motivações? Pois assim como fazemos com os homens quando estes nos dizem uma coisa tendo outra por motivação, assim devemos fazer com as máximas, as leis e os códigos de ética e moral. Na meninice não somos capazes disto, mas tendo alcançado a idade da razão, devemos aprender a tudo investigar e interpelar. É preciso interpelar a máxima como se ela fosse uma pessoa, porque afinal de contas, ela personifica sempre ou uma pessoa (o rei), ou um grupo de pessoas (os governantes, seja de que regime for). Ora, sendo a máxima a personificação de uma pessoa ou um grupo, devemos interpelá-la na qualidade de pessoa (persona). Para que, interpelando-a, consigamos ver através da máscara[4].
Quando, por exemplo, nos dizem de que é errado fazer sexo casual, qual a pergunta que devemos dirigir à Lei? Devemos perguntar-lhe: Máxima, o que está por detrás da ordenança sobre o sexo? Seria a preservação da integridade física e moral ou  algum recalque mesquinho motivado por medo e ojeriza? Talvez surpreendamo-nos de que essa senhora, a Máxima, não saiba responder-nos satisfatoriamente, porque as leis são na maioria das vezes pautas para ser seguidas sem questionamentos. A maioria dos advogados é formado para aplicar as leis. Conhecem-nas a fim de manuseá-las e aplicá-las a favor de seus clientes.
As leis dificilmente perguntam-se sobre si mesmas. É sempre um filósofo, um jus filósofo ou um abelhudo, que pergunta sobre o princípio de aquela lei ter vindo um dia a existir.
Se ao interpelarmo-la chegarmos à conclusão de que o motor da lei e ordenança de não fazer sexo casual é o de preservar a integridade física e moral, poderemos questionar a validade da lei, uma vez que é possível fazer sexo casual e mesmo assim ser respeitoso com os corpos e mentes envolvidos no ato, preservando-lhes a integridade. Neste caso, se abriria uma brecha para a revisão de tal ordenança, sua reformulação ou mesmo alteração. Todavia, se chegarmos à conclusão de que a ordenança não visa à integridade física, mas contempla a taxa de natalidade, novamente teremos uma brecha para a revisão de tal ordenança, pois se o princípio fundante da mesma é a taxa de natalidade, a lei poderia ser alterada para o uso obrigatório de envoltórios penianos[5]. E assim, interpelando a lei sobre diversos aspectos, até que enfim, se encontre o princípio metafísico que fundamenta a existência da lei e, caso não se ache um fundamento que a justifique, haverá então sempre uma brecha para a revisão e alteração da referida lei.
O mesmo ato de interpelar a lei é necessário a outras ordenanças tais como fumar, beber, dirigir e etc. Uma lei ou máxima só será válida tendo justificada sua razão de existir caso ela passe pelo crivo de várias interpelações e sob diversos aspectos. Se se encontrar o princípio metafísico que justifique a mesma, ela permanecerá de pé, caso contrário, abrir-se-á uma brecha para a sua revisão e quiça, alteração ou exclusão.
O que ocorre, porém, é que a maioria de nós não tem o hábito de olhar a lei e os costumes como se fosse uma Pessoa, preferindo segui-la cegamente. Fazemos assim para facilitarmos nossas vidas que não pode ser perdida em querelas e reflexões. É preciso viver e viver nos nossos dias significa produzir a maior quantidade de artigos possíveis no menor espaço de tempo. Todavia, para que se possa ter maior clareza sobre o tema deste ensaio, frisamos a necessidade de tentar imaginar a Lei como uma Pessoa. Mas..., imaginar parece-nos uma pausa demasiado longa para que seja considerado importante. Todavia, é somente quando se pára para imaginar e refletir sobre a imagem que fazemos da lei, que temos a oportunidade de interpelarmos as coisas a ver se elas tem de fato um fundamento e merecem atenção e obediência.
Alguém em sã consciência serviria uma senhora que o maltrata? Ou que lhe diz para fazer algo sem dar-lhe explicação plausível? A menos que se queira defender o emprego e se tenha uma patroa rigorosa, ninguém o faria. E se assim o é, porque obedecemos essa senhora chamada Máxima, Lei, Costume[6], sem interpelá-la pormenorizadamente?
Não queremos com isto, incentivar a sublevação dos ânimos, mas apenas mostrar uma forma de, ultrapassando a dicotomia própria do legalismo, que ordena o que deve e não deve ser feito, a que busquemos por detrás de cada máxima o princípio metafísico que a norteia, a verificar sua validade universal. Se for comprovada sua universalidade, devemos obedecer tal máxima e norma, porém se não o for, devemos seguir mirar por detrás dela – no princípio metafísico que a ordena. Jesus de Nazaré fez isto diversas vezes, desobedecendo à máxima para mirar e obedecer ao princípio metafísico. Jesus curou no sábado, pois compreendia que a vida estava acima do sábado. Jesus comeu com leprosos e prostitutas, julgando que a essência do ser humano está acima das categorias sociais e políticas que ocupam. Jesus deixou-se crucificar, pois compreendia que a Vida como um todo era mais importante que sua vida particular.
Interpelar a máxima e a lei é sempre sair do particular e ir para o geral, sair do particular e ir para o universal, sair do eu e ir para o nós e, abandonar o egolatria[7] e ir em direção a Deus – ao Absoluto.
Portanto, se você olhar à senhora Máxima nos olhos e ela lhe disser o que deve ou não fazer, interpele: mas senhora Máxima, senhora Lei, qual o princípio metafísico que ordena e dá coesão e coerência ao que me ordena? E, se perceber que a Máxima lhe engana, mire sempre o princípio metafísico, para que não erre obedecendo a quem não deve – a uma regra de conduta que nem sempre se harmoniza com o princípio metafísico e universal.
Dado a complexidade do tema, vale à pena tentar resumi-lo mesmo que rapidamente neste penúltimo parágrafo. O primeiro argumento apresentado neste ensaio coloca em xeque o imperativo categórico kantiano, ao afirmar que nem sempre ao buscarmos em nossas faculdades racionais, sabemos a ação correta a ser tomada. Para exemplificar são usados dois exemplos de aporias que demonstram a dificuldade em se tomar decisões baseados na subjetividade da razão, isto é, no juízo particular de cada um, supostamente impresso em todos nós pelo imperativo kantiano. O segundo argumento aponta para as leis e costumes que, não se fiando no juízo de cada indivíduo particular, busca instaurar uma espécie de cartilha que aponta para o correto e incorreto. Porém, mais uma vez, o argumento aponta para os equívocos que podem surgir ao se basear numa cartilha ética. De tal modo que, se por um lado o imperativo categórico não dá conta das aporias sobre o que deve ou não ser feito, não dá conta de todos os casos e eventos nos quais precisamos saber o que é correto, por outro lado, as leis e costumes podem atrofiar o juízo dos indivíduos que, obedecendo cegamente, deixam de enxergar o princípio pelo qual tal lei ou costume veio um dia a existir. E, finalmente, o último argumento aponta para a necessidade de, uma vez superado o imperativo categórico, é preciso superar o legalismo, mirando no princípio metafísico (que fez com que tal e tal lei viesse a existir). Mirando e acertando o princípio metafísico, o indivíduo poderá agir de maneira ética e correta, sem se prender às leis e aos costumes, pois encontrou aquilo que está acima deles e os ordena – o princípio metafísico das leis e costumes. O individuo que supera o imperativo categórico e supera o legalismo, mirando no princípio metafísico, encontrou as condições de possibilidade de se tornar um indivíduo ao mesmo tempo ético e livre.
É o espírito das leis e não a lei, que confere ao indivíduo liberdade e autonomia, como dizia o apóstolo: “(...) pois a letra mata, mas o espírito vivifica”[8]. E o espírito das leis é seu princípio metafísico. Quem encontra o espírito das leis por detrás da letra da lei alcançou liberdade e vida ética. Entretanto, como para encontrar o princípio por detrás de toda e qualquer máxima requer um certo malabarismo e exercício mental, receamos de que este ensaio sirva a apenas uns poucos homens dotados de introspecção e que se comprazem em investigar e meditar dias e noites a fio.  
E, apesar de tudo o que dissemos até aqui, preferimos deixar este ensaio em aberto com o famoso bordão de Sócrates e Montaigne: Afinal que sei eu? Isto porque ninguém se atreve a opor-se a um gigante[9], sendo mais fácil seguir o caminho da dúvida e da suspensão do juízo.


[1] Aqui o autor refere-se à Kant e ao imperativo categórico. O imperativo categórico é um dos principais conceitos da filosofia kantiana – é a capacidade que todo o homem possui de saber o que é certo e o que é errado, dado que todos possuem a faculdade da razão que lhe ordena: Não faça aos outros o que não desejas que façam contigo.
[2] Tais exemplos foram ouvidos em uma aula de filosofia, entretanto não se sabe se teria sido registrada em algum escrito filosófico ou tratado sobre ética e moral.
[3] Legalismo advém de legal, leis. O legalismo é aquilo que é legal, ou seja, diz respeito às leis. Uma pessoa legalista é, portanto aquela que observa rigorosamente as leis.
[4] O conceito de pessoa vem de persona palavra oriunda do latim que significa máscara, sendo utilizada para se referir às personagens, papéis e máscaras que os homens vestem na vida social.
[5] Popularmente conhecidos como camisinhas ou camisa de Vênus.
[6] Aqui deve-se suspender a diferença de gênero.
[7]  Egolatria é uma das varias formas de idolatria. A Bíblia, embora seja senso-comum, jamais condenou o ateísmo, mas sempre condenou a idolatria. Fê-lo pela boca dos profetas. A idolatria consiste em substituir a Deus por uma imagem, ainda que seja uma imagem criada em minha própria mente para representar o que eu acho que Deus é. Isso também é idolatria.
[8] 2 cor 3,6.
[9] Aqui o ensaísta refere-se novamente à Kant, buscando esquivar-se de mexer com um gigante da história das ideias. Talvez o ensaísta tenha sido um covarde, talvez tenha sido prudente, mas isto sempre depende da régua com que o leitor o queira medir.


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