Estudando e
observando a História, notamos que
todas as culturas e povos possuíam um código moral, fosse este religioso ou
civil – fosse o código fundado na ideia da existência de um deus ou na ideia de
Estado; fosse o código sagrado ou laico.
A
necessidade de se ter um código moral para os povos dá-se pela razão de que a
maioria das pessoas são confusas quanto ao que se deve ou não fazer. Embora o
filósofo tenha afirmado que há um imperativo
categórico[1] que nos
diz o que é certo e o que é errado fazer, não obstante, existem muitos fatos
que se bem argumentados, provariam justamente o contrário. Há até mesmo certas aporias que problematizam
o suposto imperativo categórico tornando-o uma pedra de tropeço: (i) um menino
está dentro de uma casa em chamas e toda sua família pereceu no incêndio,
quando o bombeiro o vê, o menino está encolhido e chora desesperado. Seria
correto ao bombeiro se dissesse ao garoto de que sua mãe o espera lá fora, se
após muito tentar por outros meios o garoto saísse do perigo iminente? Afinal,
nessa hora qual dos valores morais o bombeiro deveria julgar como sendo
superior: a honestidade ou a vida? E, mesmo que se decida pela última, não
estará ele num conflito e numa aporia? (ii) Outro caso é o de uma mulher velha
e feia, carente de amor, que chama o padre e lhe diz “padre, eu sou velha e
feia, ninguém me deseja, por caridade,
me dê um pouco de afago e carinho”. O
padre tendo ouvido isto deveria seguir o valor da castidade pelo qual vez votos
ou o valor da caridade pelo qual também fez votos? Aqui vemos claramente dois
exemplos de aporias, aonde nem o bombeiro nem o padre sabem o que fazer, mesmo
que consultem seus corações[2].
Conclui-se daqui, que às vezes a faculdade da razão ou o imperativo categórico
não são suficientes para que saibamos o que fazer. É por esse motivo que as
religiões do Livro possuem cada uma delas um código de leis e costumes – um
código exterior e objetivo. É pela mesma razão que as sociedades laicas possuem
cada qual seus códigos e costumes – também exteriores e objetivos.
Entretanto,
ainda que se tenha um código de leis e costumes exterior e objetivo, o qual
pode ser consultado tanto por magistrados como por pessoas comuns, sempre
surgirão casos novos para os quais a lei não terá resposta. Em geral, quando
tais casos aparecem, consultam-se as leis, e, no caso destas não responderem
satisfatoriamente, consultam-se os costumes e casos anteriormente julgados.
Porém, se o caso for inteiramente novo e não houver nada que se refira a ele
nem nas leis, nem nos costumes, fará necessário que os magistrados se reúnam em
assembleia a fim de solucionar o caso em questão.
Nosso objetivo
aqui, contudo, não é discorrer sobre o imperativo categórico, tampouco sobre a
objetividade das leis e costumes, mas mostrar a razão suficiente ou os
benefícios de se ultrapassar o legalismo[3].
Ora,
tomemos novamente o caso do bombeiro e do padre. Tomemos outros mais genéricos,
como ocorre muitas vezes em nossa sociedade quando nos dizem: é errado fumar,
fazer sexo casual, não tratar o corpo quando este for acometido por uma
enfermidade e etc. Quando se tem assim, uma cartilha que separa em duas colunas
aquilo que devemos fazer daquilo que não devemos, temos aí um empobrecimento da
faculdade de julgar. Uma pessoa que segue à risca tal cartilha nunca perceberá
o que está por detrás dela. Porque apesar de sempre haver um grupo de pessoas
que elaborou a cartilha com interesses muito específicos, há algo mais
importante que a referida cartilha no que diz respeito ao correto agir, qual
seja: o princípio por detrás de cada ato considerado bom ou mau.
Diante de
toda a máxima que nos diz o que deve ou não ser feito precisamos interpela como
se ao interpelar a lei, interpelássemos uma pessoa: ó Máxima, dê um passo para
lá e deixe-me ver o que está por detrás de você e o que lhe direciona? É
preciso que interpelemos a máxima, nos posicionemos diante dela com a pergunta
certa: Máxima, o que está por detrás de você e lhe move? Máxima, quais são suas
reais motivações? Pois assim como fazemos com os homens quando estes nos dizem
uma coisa tendo outra por motivação, assim devemos fazer com as máximas, as
leis e os códigos de ética e moral. Na meninice não somos capazes disto, mas
tendo alcançado a idade da razão, devemos aprender a tudo investigar e
interpelar. É preciso interpelar a máxima como se ela fosse uma pessoa, porque
afinal de contas, ela personifica sempre ou uma pessoa (o rei), ou um grupo de
pessoas (os governantes, seja de que regime for). Ora, sendo a máxima a
personificação de uma pessoa ou um grupo, devemos interpelá-la na qualidade de
pessoa (persona). Para que, interpelando-a, consigamos ver através da máscara[4].
Quando, por
exemplo, nos dizem de que é errado fazer sexo casual, qual a pergunta que
devemos dirigir à Lei? Devemos perguntar-lhe: Máxima, o que está por detrás da
ordenança sobre o sexo? Seria a preservação da integridade física e moral ou algum recalque mesquinho motivado por medo e
ojeriza? Talvez surpreendamo-nos de que essa senhora, a Máxima, não saiba
responder-nos satisfatoriamente, porque as leis são na maioria das vezes pautas
para ser seguidas sem questionamentos. A maioria dos advogados é formado para
aplicar as leis. Conhecem-nas a fim de manuseá-las e aplicá-las a favor de seus
clientes.
As leis
dificilmente perguntam-se sobre si mesmas. É sempre um filósofo, um jus
filósofo ou um abelhudo, que pergunta sobre o princípio de aquela lei ter vindo
um dia a existir.
Se ao
interpelarmo-la chegarmos à conclusão de que o motor da lei e ordenança de não
fazer sexo casual é o de preservar a integridade física e moral, poderemos
questionar a validade da lei, uma vez que é possível fazer sexo casual e mesmo
assim ser respeitoso com os corpos e mentes envolvidos no ato, preservando-lhes
a integridade. Neste caso, se abriria uma brecha para a revisão de tal
ordenança, sua reformulação ou mesmo alteração. Todavia, se chegarmos à
conclusão de que a ordenança não visa à integridade física, mas contempla a
taxa de natalidade, novamente teremos uma brecha para a revisão de tal
ordenança, pois se o princípio fundante da mesma é a taxa de natalidade, a lei
poderia ser alterada para o uso obrigatório de envoltórios penianos[5]. E assim,
interpelando a lei sobre diversos aspectos, até que enfim, se encontre o
princípio metafísico que fundamenta a existência da lei e, caso não se ache um
fundamento que a justifique, haverá então sempre uma brecha para a revisão e
alteração da referida lei.
O mesmo ato
de interpelar a lei é necessário a outras ordenanças tais como fumar, beber,
dirigir e etc. Uma lei ou máxima só será válida tendo justificada sua razão de
existir caso ela passe pelo crivo de várias interpelações e sob diversos
aspectos. Se se encontrar o princípio metafísico que justifique a mesma, ela
permanecerá de pé, caso contrário, abrir-se-á uma brecha para a sua revisão e
quiça, alteração ou exclusão.
O que
ocorre, porém, é que a maioria de nós não tem o hábito de olhar a lei e os
costumes como se fosse uma Pessoa, preferindo segui-la cegamente. Fazemos assim
para facilitarmos nossas vidas que não pode ser perdida em querelas e
reflexões. É preciso viver e viver nos nossos dias significa produzir a maior
quantidade de artigos possíveis no menor espaço de tempo. Todavia, para que se
possa ter maior clareza sobre o tema deste ensaio, frisamos a necessidade de
tentar imaginar a Lei como uma Pessoa. Mas..., imaginar parece-nos uma pausa
demasiado longa para que seja considerado importante. Todavia, é somente quando
se pára para imaginar e refletir sobre a imagem que fazemos da lei, que temos a
oportunidade de interpelarmos as coisas a ver se elas tem de fato um fundamento
e merecem atenção e obediência.
Alguém em
sã consciência serviria uma senhora que o maltrata? Ou que lhe diz para fazer
algo sem dar-lhe explicação plausível? A menos que se queira defender o emprego
e se tenha uma patroa rigorosa, ninguém o faria. E se assim o é, porque
obedecemos essa senhora chamada Máxima, Lei, Costume[6], sem
interpelá-la pormenorizadamente?
Não
queremos com isto, incentivar a sublevação dos ânimos, mas apenas mostrar uma
forma de, ultrapassando a dicotomia própria do legalismo, que ordena o que deve
e não deve ser feito, a que busquemos por detrás de cada máxima o princípio
metafísico que a norteia, a verificar sua validade universal. Se for comprovada
sua universalidade, devemos obedecer tal máxima e norma, porém se não o for,
devemos seguir mirar por detrás dela – no princípio metafísico que a ordena.
Jesus de Nazaré fez isto diversas vezes, desobedecendo à máxima para mirar e
obedecer ao princípio metafísico. Jesus curou no sábado, pois compreendia que a
vida estava acima do sábado. Jesus comeu com leprosos e prostitutas, julgando
que a essência do ser humano está acima das categorias sociais e políticas que
ocupam. Jesus deixou-se crucificar, pois compreendia que a Vida como um todo
era mais importante que sua vida particular.
Interpelar
a máxima e a lei é sempre sair do particular e ir para o geral, sair do
particular e ir para o universal, sair do eu e ir para o nós e, abandonar o
egolatria[7] e ir em
direção a Deus – ao Absoluto.
Portanto,
se você olhar à senhora Máxima nos olhos e ela lhe disser o que deve ou não fazer,
interpele: mas senhora Máxima, senhora Lei, qual o princípio metafísico que
ordena e dá coesão e coerência ao que me ordena? E, se perceber que a Máxima
lhe engana, mire sempre o princípio metafísico, para que não erre obedecendo a
quem não deve – a uma regra de conduta que nem sempre se harmoniza com o
princípio metafísico e universal.
Dado a
complexidade do tema, vale à pena tentar resumi-lo mesmo que rapidamente neste
penúltimo parágrafo. O primeiro argumento apresentado neste ensaio coloca em
xeque o imperativo categórico kantiano, ao afirmar que nem sempre ao buscarmos
em nossas faculdades racionais, sabemos a ação correta a ser tomada. Para
exemplificar são usados dois exemplos de aporias que demonstram a dificuldade
em se tomar decisões baseados na subjetividade da razão, isto é, no juízo
particular de cada um, supostamente impresso em todos nós pelo imperativo
kantiano. O segundo argumento aponta para as leis e costumes que, não se fiando
no juízo de cada indivíduo particular, busca instaurar uma espécie de cartilha
que aponta para o correto e incorreto. Porém, mais uma vez, o argumento aponta
para os equívocos que podem surgir ao se basear numa cartilha ética. De tal
modo que, se por um lado o imperativo categórico não dá conta das aporias sobre
o que deve ou não ser feito, não dá conta de todos os casos e eventos nos quais
precisamos saber o que é correto, por outro lado, as leis e costumes podem
atrofiar o juízo dos indivíduos que, obedecendo cegamente, deixam de enxergar o
princípio pelo qual tal lei ou costume veio um dia a existir. E, finalmente, o
último argumento aponta para a necessidade de, uma vez superado o imperativo
categórico, é preciso superar o legalismo, mirando no princípio metafísico (que
fez com que tal e tal lei viesse a existir). Mirando e acertando o princípio
metafísico, o indivíduo poderá agir de maneira ética e correta, sem se prender
às leis e aos costumes, pois encontrou aquilo que está acima deles e os ordena
– o princípio metafísico das leis e costumes. O individuo que supera o
imperativo categórico e supera o legalismo, mirando no princípio metafísico,
encontrou as condições de possibilidade de se tornar um indivíduo ao mesmo
tempo ético e livre.
É o
espírito das leis e não a lei, que confere ao indivíduo liberdade e autonomia,
como dizia o apóstolo: “(...) pois a letra mata, mas o espírito vivifica”[8]. E o
espírito das leis é seu princípio metafísico. Quem encontra o espírito das leis
por detrás da letra da lei alcançou liberdade e vida ética. Entretanto, como
para encontrar o princípio por detrás de toda e qualquer máxima requer um certo
malabarismo e exercício mental, receamos de que este ensaio sirva a apenas uns
poucos homens dotados de introspecção e que se comprazem em investigar e
meditar dias e noites a fio.
E, apesar
de tudo o que dissemos até aqui, preferimos deixar este ensaio em aberto com o
famoso bordão de Sócrates e Montaigne: Afinal que sei eu? Isto porque ninguém
se atreve a opor-se a um gigante[9], sendo
mais fácil seguir o caminho da dúvida e da suspensão do juízo.
[1] Aqui o autor refere-se à Kant e ao
imperativo categórico. O imperativo
categórico é um dos principais conceitos da filosofia kantiana – é a capacidade
que todo o homem possui de saber o que é certo e o que é errado, dado que todos
possuem a faculdade da razão que lhe ordena: Não faça aos outros o que não
desejas que façam contigo.
[2] Tais exemplos foram ouvidos em uma
aula de filosofia, entretanto não se sabe se teria sido registrada em algum
escrito filosófico ou tratado sobre ética e moral.
[3] Legalismo advém de legal, leis. O
legalismo é aquilo que é legal, ou seja, diz respeito às leis. Uma pessoa
legalista é, portanto aquela que observa rigorosamente as leis.
[4] O conceito de pessoa vem de persona palavra oriunda do latim que
significa máscara, sendo utilizada para se referir às personagens, papéis e
máscaras que os homens vestem na vida social.
[5] Popularmente conhecidos como
camisinhas ou camisa de Vênus.
[6] Aqui deve-se suspender a diferença
de gênero.
[7]
Egolatria é uma das varias formas de idolatria. A Bíblia, embora seja
senso-comum, jamais condenou o ateísmo, mas sempre condenou a idolatria. Fê-lo
pela boca dos profetas. A idolatria consiste em substituir a Deus por uma
imagem, ainda que seja uma imagem criada em minha própria mente para
representar o que eu acho que Deus é. Isso também é idolatria.
[8] 2 cor 3,6.
[9] Aqui o ensaísta refere-se
novamente à Kant, buscando esquivar-se de mexer com um gigante da história das
ideias. Talvez o ensaísta tenha sido um covarde, talvez tenha sido prudente,
mas isto sempre depende da régua com que o leitor o queira medir.
Nenhum comentário:
Postar um comentário