Não é de
hoje que os pobres se queixam de sua condição material e olham para os ricos
com certa inveja. Tal sentimento de inveja ensejado no coração dos mais pobres
é promovido entre outras coisas, por uma sociedade marcadamente consumista e
pela grande mídia que exalta ricos e celebridades ao invés de exaltar pessoas
exemplares em matéria de moral, arte, ciência ou conduta. Mas deixe-nos
inverter por um momento o raciocínio para mostrar que o pobre não deve invejar
o rico em nada, muito pelo contrário, é o rico quem deveria invejar-se do pobre
(não o fazendo por causa de sua cegueira emocional). Ou, se pudéssemos dizer de
outro modo: deixe-nos mostrar como o castigo dos ricos é a própria vida que
eles levam.
Tendemos a
olhar as pessoas de posses como favorecidas, como tendo mais possibilidades de
escolhas e tendo os desejos prontamente atendidos. É evidente que precisamos de
dinheiro, sendo este o meio de troca entre os homens desde a antiguidade. E é
evidente que certa providencia em dinheiro nos tira de muitos apuros e
necessidades. Entretanto, quando se tem os desejos assim, prontamente
atendidos, ocorre que o espaço entre desejo e satisfação é sobremodo encurtado,
tal como a pele de onagro que encolhia a cada desejo realizado por seu dono[1]. E, se o
espaço entre desejo e satisfação é encurtado, o esforço também o é, a reflexão,
as estratégias para se obter isto ou aquilo e enfim, a vida toda é encurtada,
pois quando se banaliza o desejo e a experiência de satisfazê-lo, empobrece-se
a vida. Talvez esta seja uma possível interpretação do que o autor quis mostrar
em sua estória onde a pele de onagro realizaria todo e qualquer desejo de seu
dono, encolhendo a cada desejo e, cujo comprimento era o mesmo que a extensão
da vida de seu possuidor. Todo desejo
tão prontamente desejado e satisfeito, encurtava a vida do dono da pele de
onagro, talvez esta sim, símbolo da banalização do desejo e do empobrecimento
da vida – de uma vida que vive de saciar cada desejo sem comprometimento com o
tempo necessário à sua conquista, reflexão e ponderação. No fim da vida, ou
melhor, no fim da pele de onagro, o dono de certo teria satisfeito muitos
desejos, apesar de não tê-los experimentado profundamente, pois passava de um
desejo a outro tal como uma cadela no cio – sem ponderação, sem interiorização
e sem reflexão.
Seria
melhor se esse tal homem, dono da pele de onagro, não tivesse realizado todos
os desejos, se frustrado algumas vezes, ou mesmo que queimasse a pele e a
jogasse fora, para então experimentar a vida como um homem comum. Porque um
homem comum é mais capaz de ter experiências profundas do que um homem rico. Um
homem comum, ao ver frustrado algum desejo, tem a oportunidade de voltar-se
para dentro de si, em reflexão e, com o objetivo de ver o que deu errado, acaba
por descobrir facetas de vida interior outrora desconhecidas e despercebidas.
E, quando realiza algum desejo, este não se deu num estalar de dedos, mas levou
tempo, houve um empenho e um processo para a satisfação do desejo. Neste
processo, tal homem também teve oportunidade de fazer um mergulho e
enriquecer-se de vida interior, tendo uma experiência rica e profunda (não uma
experiência rasa e de estalar de dedos).
Outra
crítica à inveja que se pode cultivar dos ricos, é a de que, se ele enriqueceu
ilicitamente, pode até ter muitos bens, carros e mansões, mas sua vida
emocional é sem sombra de dúvidas uma vida precária. Vive de esconder-se por
causa das falcatruas que cometeu para enriquecer seus cofres, a desconfiança
está estampada em seu rosto – pois teme perder o que injustamente ganhou –,
está sempre aflito e com medo dos que o cercam, testando para ver se
aproximam-se dele por afeto ou interesse –, tem rabo preso com outros corruptos
como ele, e vive uma vida que apesar do conforto material o joga mais e mais
para a solidão. Porque não basta estar no meio de muita gente para não estar
sozinho. Estar sozinho significa não ter relacionamentos de intimidade
verdadeira, não poder ser aquilo que se é na frente dos outros. Um homem assim
é um homem solitário.
Tanto no
primeiro caso – o do rico que tem prontamente seus desejos satisfeitos – como
no segundo caso – o do rico que enriquece injustamente com dano do pobre – em
ambos, vê-se que a vida do rico, além de não ser em nada invejável (a não ser no
suposto conforto material; e este é sempre relativo), é acima de tudo uma vida
atribulada. O rico vive uma vida insalubre do ponto de vista emocional: aflito,
desconfiado, plantando artimanhas, engambelando, desejando sem ter o tempo
necessário para aprofundar a experiência de desejo-empenho-satisfação. A vida
do rico deveria assim, ser desprezada como a pior das vidas possíveis.
Mas alguns
de vocês perguntarão: e o rico honesto? Aquele que enriquece de maneira digna e
justa, às custas do próprio trabalho? Bem,... neste caso, ele não sofre dos
problemas relatados no segundo caso, porque sua vida emocional não está
comprometida. Ele não vive em meio a falcatruas, rabos presos e artimanhas. Ele
tem pessoas e amigos aos quais pode abrir-se para dar e receber afeto. Não
afeto em troca deste ou daquele favor, mas afeto por causa do afeto mesmo, por
causa de quem se é. As pessoas o amam por sua causa mesma e não por causa do
que ele pode oferecer em troca. Porém, este homem ainda tem consigo o problema
descrito no primeiro caso: seus desejos podem ser imediatamente satisfeitos sem
que ele tenha o devido tempo para aprofundar a experiência
desejo-empenho-satisfação. Mas suponhamos que tal homem rico tenha vindo da
pobreza e batalhado muito para chegar a ser rico. Neste caso, ele já conhece um
bocado da experiência de desejar, empenhar-se e satisfazer-se. Ele, por meio de
lutas e frustrações passadas, já possui um pouco de vida reflexiva e vida
interior. Agora pode dar-se ao luxo de ter os desejos satisfeitos ao estalar de
dedos. Mesmo aí, tal homem rico e honesto, corre o risco de dada as mordomias
que merecidamente adquiriu, se esqueça de como é rica a espera e o esforço
dirigido a cada desejo. É um risco que ele corre e precisa montar alguma
estratégia para que a posse das riquezas não subtraia de si a sabedoria que ele
adquiriu para chegar até aqui, pois não são poucos os homens que, esquecendo-se
as durezas do passado, tornaram-se tolos.
Mas
imaginemos que tal homem tenha herdado toda a fortuna que possui. Ele não sabe
o que é ganhar e nem perder. Ele é um inexperiente no que se refere ao
mercado. Não conhece a arte da barganha
e não entende de pesos e contrapesos. Nada sabe sobre inflação, flutuação da
moeda ou taxas de impostos sobre produto. Logo, este homem tem o problema do
primeiro caso – desejos satisfeitos num estalar de dedos – e, embora não tenha
os problemas do segundo caso, pois não teve que se enrolar para angariar bens,
deverá aprender logo a administrar sua poupança para não vir à falência. Precisará
ter um administrador fiel em quem possa confiar, dado que ele mesmo possui
pouca experiência nisso. Tão logo herde a herança se verá angustiado,
esforçando-se por enxergar o propósito de cada pessoa que se lhe aproxima. A
angústia entrará em sua alma tal como ave de rapina. Melhor seria se ele não
houvesse herdado tamanha fortuna ou se abrisse mão daquilo que lhe excedesse às
necessidades fundamentais.
Até aqui
tentamos mostrar que a inveja que porventura se possa nutrir em relação aos
ricos é, na maioria das vezes, infundada. Na maioria das vezes os ricos não são
pessoas felizes e, em algumas delas são até mesmo desafortunados, atribulados e
infelizes. Entretanto, há uma espécie de rico a quem se deve admirar:[2] o rico
que, a despeito de toda a sua riqueza, sabe colocá-la em seu devido lugar. Mas
não imaginem que falamos do bolso.
O lugar da
riqueza não é acima das demais pessoas. O lugar da riqueza não é no coração. A
riqueza não serve para oprimir, mas seu lugar é o de servir. A riqueza não é só
para um, mas para o bem da maior quantidade de pessoas possíveis.
O homem
rico precisa ter uma hierarquia de valores, e só aí saberá colocar o dinheiro
em seu merecido lugar. A riqueza tem sim, um devido e merecido lugar, porém
colocá-la num pedestal é cometer injustiça. O lugar justo da riqueza é o de
servir às necessidades do homem que a detém, mas é também o de abençoar o maior
número de pessoas que puder, é o lugar do re-partir e do com-partilhar.
O homem
que, embora rico e, embora aumentando ainda sua riqueza, sabe seu devido lugar,
tem uma vida admirável, mas o que sendo rico, não põe a riqueza em seu devido
lugar, além de cometer injustiça, será afligido por todas as durezas descritas
neste breve ensaio. Isto não é praga, mas a constatação de quem viveu e viu
muitas coisas.
Ademais, a
equação é muito simples: ou se escolhe o dinheiro ou a Deus, ou Deus ou Mamom[3]. Para
sermos mais claros: ou se escolhe o dinheiro ou se escolhe relacionamentos
pessoais. Não é raro ver um rico que a despeito de toda sua riqueza está só e
se queixa, e um pobre que apesar de sua pobreza está rodeado de amigos. O rico
insensato perdeu a leveza e não pode mais rir, mas ao pobre, toda a sutileza
lhe provoca riso. Além de saber o que é solidariedade, pois sempre alguém menos
pobre que ele vem lhe socorrer.
Por tudo
isto, achamos que a maioria dos ricos têm uma vida muito dura. Ao invés de
inveja, devíamos dirigir-lhes compaixão e, caso queiram, dirigir-lhes conselhos
para o bem viver. Caso não aceitem conselhos, não lhes devemos querer mal,
afinal, eles já tem sofrido demais nesta vida.
[1] Referência à Balzac em A Pele de Onagro. O romance conta que
havia uma pela de onagro, capaz de satisfazer todos os desejos de seu dono, mas
que a cada desejo satisfeito, ela encolhia. E, quando finalmente encolhesse ao ponto de extinguir-se, a vida de seu dono também terminaria. Talvez Balzac estivesse alertando para o
perigo de satisfazer todos os nossos desejos, pois como não sabemos
desejar, acabaremos mais cedo ou mais tarde, indo em direção à morte.
[2] Note que o autor utiliza o termo
admirar e não invejar. A palavra inveja vem do latim invidere que significa “não ver”. Logo, o invejoso é aquele que não
vê ou não quer ver os méritos dos outros para que tenham aquilo que tem. Pior,
o invejoso é aquele que não vê ou não quer ver aquilo que ele mesmo possui:
tanto materiais quanto espirituais como talentos e habilidades. A admiração,
por sua vez, caminha no sentido oposto, vendo e enxergando o mérito das outras
pessoas e, por isso mesmo, respeitando-as e admirando-as. Outrossim, segundo
Aristóteles, a admiração é o princípio da filosofia.
[3] Mateus 6,24. Mamom é um dos sete
príncipes do inferno que simbolizam o deus-dinheiro. Jesus estava querendo
dizer que o altar é um só, e que ou colocamos Deus no altar ou colocamos Mamom (o
dinheiro). E como amar a Deus equivale a amar ao próximo, amar ao dinheiro
equivale a ser indiferente ao próximo. Ou se serve a Deus e ao próximo, ou à
Mamom e aos interesses egoístas do dinheiro.
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