quinta-feira, 12 de abril de 2018

O seu rosto imprime a vida que você teve


Certa vez um visitante foi anunciado a entrar no gabinete de Bill Clinton. Clinton disse à secretária que não o atenderia. “Mas por quê?”, perguntou ela. “Não fui com a cara dele”, respondeu. “Mas que culpa o coitado tem de ter a cara que tem?”, perguntou a secretária. “Minha filha, depois dos quarenta anos todo mundo tem culpa de ter a cara que tem”, respondeu o ex-presidente dos Estados Unidos.  

Não posso dizer com precisão quando nós, ainda pequenos, conseguimos pela primeira vez captar o rosto humano e suas expressões, talvez um psicólogo soubesse dizer com precisão. Entretanto, nosso objetivo aqui não é tratar de psicologia, regressão à infância ou coisa que o valha. Pretendemos tão somente falar sobre o rosto, imaginá-lo e refletir sobre ele.
Certo é, de que cada pessoa possui um rosto singular, com suas formas e traços. Alguns tem o rosto mais rechonchudo enquanto outros possuem um rosto mais fino por assim dizer. Uns possuem o queixo mais preponderante enquanto outros têm olhos esbugalhados. Uns rostos são mais simétricos que outros, uns são mais belos que outros (de acordo com os padrões da época).
Todavia, retirando as diferenças específicas de cada rosto particular, podemos dizer que há em todos os rostos particulares, algo de universal. Se por um lado, a particularidade de cada rosto são suas feições e traços físicos, por outro, a universalidade está na expressão das emoções, pois todo rosto é capaz de expressar alegria, tristeza, raiva, medo e etc. E, não é como no caso dos traços físicos do rosto, onde cada rosto possui seus traços particulares. Ao contrário! As emoções são expressas nos rostos particulares de maneira universal. A alegria, o medo, a surpresa são expressos de igual modo tanto no rosto de uma pessoa bela quanto no rosto de uma pessoa feia; são expressos de igual modo tanto no rosto de um brasileiro quanto no rosto de um chinês.
A expressão de surpresa, que induz o levantar das sobrancelhas e o cair do queixo é expresso de maneira universal em todos os rostos particulares.  A raiva que nos faz contrair a mandíbula, cerrando os dentes e arqueando as sobrancelhas, é igual em todos os rostos. Então, por mais que cada rosto tenha suas feições particulares, a expressão das emoções se dá em todos de forma universal.
Se fossemos tratar de utilitarismo, quer dizer, da utilidade do rosto, ou ainda, da principal função do rosto, diríamos: é a de comunicar as emoções. Todo rosto comunica uma ou mais emoções. Emoção, palavra oriunda do latim emovere que significa “mover para fora”, descolar-se. Ora, se a principal função do rosto é expressar e comunicar emoções e a palavra emoção aponta em direção a algo que está fora, que se movimenta e se lança para fora, isto significa que o rosto tem como telos, como finalidade, algo que não ele mesmo. O telos do rosto, sua finalidade, é lançar-se para fora, mover-se em direção a outrem, comunicando as emoções da pessoa em questão.
Cabe aqui um breve adendo: coisa muito difícil é simular as emoções, porque elas foram moldadas e são instintivas. São respostas instintivas. Vê-se com certa facilidade, por exemplo, quando alguém está sorrindo ou simulando sorrir ou quando alguém está surpreso. Os músculos faciais são acionados instintivamente dificultando o fingimento – ato que requer muito treino e que os atores executam com maestria.
Compreendendo isto, percebemos que o telos do rosto é mover-se para fora. O rosto salta para fora. Suas expressões e comunicação saltam para fora. O meu rosto deseja alcançar outros rostos, comunicando subjetividade a subjetividade. Minhas expressões se comunicam com a ajuda da luz e refração no olho de quem me enxerga e vice-versa. O rosto, embora meu e particular, se lança para fora e me lança para fora. Me lança para o outro. Me lança para o mundo.
Os outros “entram” em mim por meio de seus rostos e eu “entro” nos outros por meio de meu rosto. Somos igualmente lançados para fora, em busca da expressão e comunicação de nossos desejos. Um rosto desejoso de amor comunicará em suas expressões a ternura que sente, na maneira de olhar e posicionar as sobrancelhas e o queixo. Mas, se no rosto a quem se dirige, o mesmo se mostrar sisudo, tal comunicação não se efetivará e o desejo do primeiro será negado pelo segundo. Entretanto, se a resposta for recíproca, o desejo comunicado pelo primeiro terá aceitação do segundo e o desejo de ternura será satisfeito. Variações deste único exemplo poderiam ser dados aos montes, como alguém que comunica sua raiva ao morder os lábios e de como o interlocutor lhe responde, e assim por diante. Todavia, não pretendemos nos alongar sobre isto, já que as variações do rosto e sua comunicação podem ser concebidas e preenchidas pela imaginação de cada leitor.
Concluímos, portanto de que, se cada rosto se lança para fora, no outro e no mundo, cada rosto particular revela a essência da pessoa por detrás dele – sua psique, o estado de sua alma. Quando se é jovem, com a pele elástica e macia, as expressões vão e vem no rosto com facilidade e sem deixar marcas, entretanto, quanto mais velha é uma pessoa e a pele já perdeu bastante da elasticidade, as expressões que mais comunicou durante a vida ficarão marcadas afetando-lhe a feição.
Um jovem pode contrair e relaxar os músculos faciais sem que suas feições fiquem marcadas, porém, à medida que envelhece e a pele perde a elasticidade, seu rosto vai mostrando as marcas e sulcos, não apenas do tempo e idade, mas principalmente, das emoções que cultivou e comunicou durante sua vida. Uma pessoa que foi jovem e não revelava tanto assim a amargura, ao envelhecer, terá as feições amargas, resultados de anos e anos de cultivo do amargor, no exercício de contrair os músculos do rosto de maneira a expressá-lo constantemente. Ou uma pessoa que ao envelhecer, parece-se como quem está com nojo. De certo tal pessoa passou a vida sentindo nojo e contraindo os músculos faciais nessa direção, de maneira que, ao envelhecer e já com a pele viscosa e ressecada, tal expressão ficou impressa em seu rosto. Semelhantemente é a pessoa que possui uma feição serena, outra que possui uma feição triste, com as sobrancelhas arqueadas e lábios levemente caídos, e outra que expressa ternura. Tais pessoas provavelmente cultivaram e comunicaram tais sensações e sentimentos ao longo de sua vida, mas agora, já velhos, tais expressões estão impressas em seus rostos viscosos e sem tanta elasticidade para atenuá-las.
Enfim, quando se é jovem pode-se mais facilmente dissimular os estados da alma, porém ao envelhecermos, fica difícil enganar os outros sobre aquilo que verdadeiramente jaz dentro de nós. As feições ficarão marcadas com uma ou duas das emoções que comunicamos através do rosto – àquelas que comunicamos repetidas vezes e com relativa constância ao longo da vida.
Se alguém tivesse dúvidas sobre o verdadeiro caráter de um jovem rancoroso, não o terá mais quando este for velho, se a expressão de rancor lhe tiver sido gravada no rosto após anos e anos comunicando rancor através de suas feições. Se alguém tivesse dúvidas acerca de uma jovem que aparentava ser amável, terá no entanto, poucos motivos para duvidar quando esta for velha e a amabilidade tiver sido impressa em seu rosto tanto pelo tempo como por ser esse um sentimento recorrente e que expressou diversas vezes durante sua vida no contrair mesmo dos músculos faciais. O mesmo se dará com uma pessoa triste, melancólica, esperançosa e etc.
O rosto auxiliado pelo tempo trata de imprimir em si a vida que tivemos – a vida por detrás do rosto. Talvez o faça como castigo, alertando os outros acerca de quem nós somos sem que tenhamos como dissimular. Vale dizer que às vezes acontecimentos traumáticos marcam de tal modo um rosto, que mesmo sendo ele formoso, torna-se triste e cansado (como a perda de um ente querido ou um desastre). De uma forma ou outra, a vida acaba sempre sendo impressa, gravada ou simplesmente talhada no rosto do indivíduo. O rosto é, pois, uma verdadeira impressora das emoções, imprimindo em seus músculos e curvaturas, cada sulco e tônus das emoções cultivadas e vividas. E, a tinta do rosto são os próprios sulcos e rugas impressos com a ajuda do tempo. Quando somos jovens podemos nos esconder por detrás do rosto , porém, quanto mais velhos ficamos, mais a nossa alma se revela, ficando impressa em nossas feições.

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* Um outro título possível para este ensaio seria: O rosto como gravura (ou, A gravura do rosto). "Gravura" talvez fosse uma expressão mais adequado que "impressora".

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